... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

AFINAL - Álvaro de Campos

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Sobre a paixão

Vida sem paixão é morte aos poucos.

Amizade sem paixão é banal.
Vício sem paixão é hábito.
Amor sem paixão vira rotina, não há surpresa, é previsível
(o dia, os gestos, os olhares, as palavras).
Paixão é uma intensidade no fazer as coisas
Que impulsiona, estimula.

Dia sem paixão é cinza.
Olhar sem paixão é apatia, não brilha.
Correr sem paixão é inútil, não te leva a nenhum lugar.
Falar sem paixão é esconder o que se quer dizer.
Melancolia é a paixão da tristeza.

Paixão é querer ser novo
Em tudo o que se faz
E querer ter de novo tudo e mais.

Sorrir sem paixão não é.
Sentir com paixão é experimentar.

Não ter paixão me esvazia.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Um dia cinza.

Tenho dias bons, mas tem dias que eu queria que não existissem, ou que eu passasse por eles meio adormecida, entorpecida, pra não sentir tanta dor.
Hoje está um dia cinza. As cores são boas para definir o humor. Quando tudo está bem, as cores geralmente são quentes, amarelos, laranjas, vermlhos, cores vivas, esfuziantes. Quando se está calmo ou tranquilo, as cores são azuis, verdes e suas variações. Quando se está inclinada à tristeza ou à melancolia, tudo aparece em tons de cinza.
A vontade de chorar me invade muito forte, como há dias não sentia. Uma angústia em nó justo e cego no meu peito. Há algo lá fora que me espera, que aguarda de mim um ímpeto de força e de luta que não consigo encontrar. Uma porta, um caminho, uma saída? Tudo é tão embaçado como neblina de serra, densa e fria.
O céu teve muitas inconstâncias hoje também, eu estive a observá-lo. Ora se abria, ora se fechava. Ora as nuvens se tingiam de laranja e dançavam lentas, ora se juntavam numa massa cinza. O azul apareceu por alguns minutos, mas a chuva não deu as caras desde a manhã. Minhas lágrimas bastaram para umedecer o clima.
Tenho me sentido tão impotente, tão presa num movimento repetitivo que não me leva a lugar nenhum... Tento me alegrar, mas essa angustia no peito vai crescendo, crescendo e ficando maior que eu. Não consigo fazer nada. Às vezes tenho até vontade, mas não consigo.


*R . diz:
-Se tem vontade porque não consegue?
*T . diz:
-não sei... é estranho...
*R . diz:
-O que você tem vontade de fazer quando ela aparece?
*T . diz:
-a angustia ou a vontade de fazer coisas?
*R . diz:
-Não, a vontade, é de fazer o que?
*T . diz:
-sei lá, fazer coisas novas... sair, passear, ir num parque, no cinema, conhecer gente... ou experimentar uma aula de dança, mexer o corpo... e coisas mais a longo prazo, trabalhar, descobrir uma carreira nova e excitante, estudar, mudar de casa, ser indepentende... são muitas coisas, mas ao mesmo tempo elas parecem estar tão longe de mim, não sinto que posso consegui-las.
-to sendo estranha? ou exagerando? sendo dramática?


Dia cinza é dia de se embrenhar nos poços dos poços sem fins...

"Primeiro você cai num poço. Mas não é ruim cair num poço assim de repente? No começo é. Mas você logo começa a curtir as pedras do poço. O limo do poço. A umidade do poço. A água do poço. A terra do poço. O cheiro do poço. O poço do poço. Mas não é ruim a gente ir entrando nos poços dos poços sem fim? A gente não sente medo? A gente sente um pouco de medo mas não dói. A gente não morre? A gente morre um pouco em cada poço. E não dói? Morrer não dói. Morrer é entrar noutra. E depois: no fundo do poço do poço do poço do poço você vai descobrir quê. " (Caio Fernando Abreu - Nos Poços)


quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Para encontrar a justa forma do que se quer dizer.

olhos fechados
respirar profundo
mãos descansando nas pernas
pés tocando o chão
coluna ereta
cabeça erguida
não pense em nada
respirar profundo outra vez
soltar o ar devagar
apensa sinta
deixe passra o tremor do corpo
deixe sossegar as vozes
deixe calar as palavras
deixe desacelerar o coração