... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Medo

Eu devia estar bem feliz, não devia? E porque não estou? Eu me sinto aliviada, claro... E estou ansiosa também... Mas é como se tudo pudesse ruir num piscar de olhos. É como as coisas acontecem geralmente pra mim. Ou como eu acho que elas acontecem. O que eu acredito, o que eu quero, o que eu consigo, tudo escapa da minha mão como água, tudo é tão difícil de manter como o vento. Então acho que é um pouco de medo de que tudo isso não seja real e seja tirado de mim. Ou como se essa conquista fosse uma mentira que estivesse prestes a ser descoberta: estou num palco e serei desmascarada a qualquer momento. Tudo é uma grande farsa, e logo todos estarão apontando seus dedos sujos e acusadores, rindo da minha cara patética de desamparo e choro. No dia seguinte ninguém mais se lembrará de nada e restarei só, com meus cacos pra juntar. De novo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Pareça e Desapareça - PAULO LEMINSKI

(Foto: "A fleeting moment" por Larissa Felsen)


Parece que foi ontem.
Tudo parecia alguma coisa.
O dia parecia noite.
E o vinho parecia rosas.
Até parece mentira,
tudo parecia alguma coisa.
O tempo parecia pouco,
e a gente se parecia muito.

A dor, sobretudo,
parecia prazer.
Parecer era tudo
que as coisas sabiam fazer.
O próximo, eu mesmo,
Tão fácil ser semelhante,
quando eu tinha um espelho

pra me servir de exemplo.
Mas vice versa e vide a vida.
Nada parece com nada.
A fita não coincide
com a tragédia encenada.
Parece que foi ontem.
O resto, as próprias coisas contem.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Insight

No centro onde todas as coisas convergem.
É lá que te acharei, completo, seguro, nítido, à espera.
Nem mesmo saberás da iminência de uma coisa completamente diferente do que imaginavas pra esse momento. Como se segurasses uma fruta que não lhe parece atraente, mas tem um sabor muito doce, que só descobres se encaras tua recusa e te rendes à primeira mordida. Ou o contrário, quando pensas que a fruta bonita e reluzente será também suculenta, e a descobres oca e vazia.
É assim que acontecerá. Sem situações perfeitamente combinadas pelo acaso, sem aquele primeiro olhar que anuncia uma coisa profunda e bela. Quando chegar será apenas uma questão de escolha, de experimentação, sem artifícios, sem sinais, sem ilusões. Algo se recostando de mansinho, à primeira vista apenas comum, nem bom nem desastroso. Virá como um presente escondido debaixo da cama, descoberto talvez um pouco tarde mas, se reparares bem, se abrirá na hora certa. Na justa hora em que o pensamento te atinge e percebes que tudo o que sua alma buscava frenética e insistentemente estava bem à frente do seu nariz. Pensarás que a situação chega a ser cômica e patética, tudo tão claro e óbvio que te sentirás um tolo por não o ter alcançado antes.
E de repente tudo fará sentido, tudo será absurdamente nítido, completo, seguro. Sentirás toda a sua vida convergendo para aquele preciso momento, à beira de um abismo, e te tornarás completamente livre, no centro do mundo, de onde emana as coisas belas e simples e corriqueiras e perfeitas. E num último respirar profundo, barços abertos e receptivos à vida, saltarás seguro, nítido e completo, em direção ao desconhecido que não é nada senão nosso próprio ser espelhado nos olhos claros e calmos do outro.