... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Caio Fernando Abreu

Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Alberto Caeiro

O mistério das coisas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio e que sabe a árvore
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das coisas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as coisas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —
As coisas não têm significação: têm existência.
As coisas são o único sentido oculto das coisas.

Alberto Caeiro.


---Fernando Pessoa, plural como o universo.---


sexta-feira, 30 de julho de 2010

ondas mar e pensamento
dores flores ou um lamento

na triseza dessas horas
na poeira desse dia

tudo me apavora
e tudo é poesia

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Charles Baudelaire

AS JANELAS

Aquele que olha, da rua, através de uma janela aberta, jamais vê tantas coisas como quem olha para uma janela fechada. Nada existe mais profundo, mais misterioso, mais fecundo, mais tenebroso, mais deslumbrante, que uma janela iluminada por uma lamparina. O que se pode ver ao sol nunca é tão interessante como o que acontece por trás de uma vidraça. Naquele quartinho negro ou luminoso a vida palpita, a vida sonha, a vida sofre.
Para além das ondas de telhados, diviso uma mulher já madura, enrugada, pobre, sempre debruçada sobre alguma coisa, e que nunca sai de casa. Pela sua fisionomia, pelas suas vestes, por um gesto seu, por um quase-nada, reconstituí a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda, que às vezes conto a mim próprio, a chorar.
Se fosse um pobre velho, eu lhe haveria reconstituído a história com a mesma facilidade.
E vou-me deitar, orgulhoso de ter vivido e sofrido em outras criaturas.
Haverias de perguntar-me agora: -"Estás certo de que essa história seja a verdadeira?" Que importa o que venha a ser a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou, e o que sou?

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Poeta



De repente, numa estação de metrô qualquer, num dia sem pressa e sem nó, num dia em que nosso olhar se abre para o que está em volta, se nos permitirmos ser afetados, podemos nos deparar com versos de um poeta de tempos muito antigos, e suas palavras ressoarem em nós como se tivessem sido escritas pelo nosso próprio espírito... nada é acaso.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Num dia sem pressa e sem nó

sinto vontade de escrever, estourar meu espírito
em bolhas de areia do deserto
um poço de sensações esquecidas,
uma manhã de cores púrpuras
nem dores nem amores
só vontade de ser e me multiplicar
em pó de estrela no espaço fora
ruído, múrmurio de outros mundos, outros povos
antigos sons, glossolalia,
vozes que falam através de versos incertos
vozes antepassadas e ainda vivas
cruzam e atravessam meu espírito
e minha carne vindos de todos os lados
e indo para todas as dimensões
e plurificando e transcendendo
lindo palavreado musicalizado
floreios infinitamente poderosos
capazes de me mover e ressoar
por séculos e séculos amém
sou toda cósmica e fluídica
nunca tive forma, nunca terei limites

domingo, 21 de março de 2010

stay out of trouble

vivo a esperar tão triste por um pedaço seu fico procurando entre restos malcheirosos algum indício da tua presença etérea vida que nem sangue espesso morno e viscoso fico escarafunchando os cantos pra me convencer que foi real que não sonhei que sua voz houve grito no meu quarto passo os dias com a cabeça latejando a tua figura sorridente escárnio mentira gargalhando a minha dor humilhando a minha verdade minha ingênua entrega meu pequeno castigo por querer sem poder ter seu amor de brincadeira sua seca sedução como vinho virando vinagre um dia virando uma noite escura e densa sem luar quero que você me use mesmo assim nessa minha vaidade adolescente que não conhece limite fábula floreada de encantos e enganos porque mesmo assim essa ilusão será doce e marcante um dia sem igual nessa minha vidinha de merda.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Sou o mundo todo

Quero pensar novas formas.
Pensando eu plasmo no mundo outros territórios, habito espaços não fixos, mas mutáveis, plásticos, polifórmicos, plurais. Pensando eu impulsiono um movimento de convergência com o mundo: nos tornamos inseparáveis. Não há mais barreiras ou obstáculos, tudo nos afeta mutuamente. O que eu sou se confunde com o que o define: os contornos da cidade, os trajetos diários, as pessoas que circulam, as idéias que trafegam distâncias imensas, a chuva que modifica a paisagem, a vida cotidiana. Tudo isso me transforma, me atinge, me comunica afetos diversos. Muda toda a minha maneira de ser e estar, todos os dias. E mudo também a forma do mundo, sendo estando pensando uma coisa nova.
Sou essa integração cósmica todos os dias. Atravesso o mundo e sou atravessada por ele, e me sinto eternamente grata pelas ruas, pela chuva, pela cidade, pelo sol, pelas cores do céu, pelos sons, pelos cheiros, pelas pessoas e principalmente por essa conexão tão intensa com tudo o que existe.
Sou o que é.
Sou o mundo todo.

Cristo na Cruz - Jorge Luis Borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

in: "Os Conjurados"