... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Sou o mundo todo

Quero pensar novas formas.
Pensando eu plasmo no mundo outros territórios, habito espaços não fixos, mas mutáveis, plásticos, polifórmicos, plurais. Pensando eu impulsiono um movimento de convergência com o mundo: nos tornamos inseparáveis. Não há mais barreiras ou obstáculos, tudo nos afeta mutuamente. O que eu sou se confunde com o que o define: os contornos da cidade, os trajetos diários, as pessoas que circulam, as idéias que trafegam distâncias imensas, a chuva que modifica a paisagem, a vida cotidiana. Tudo isso me transforma, me atinge, me comunica afetos diversos. Muda toda a minha maneira de ser e estar, todos os dias. E mudo também a forma do mundo, sendo estando pensando uma coisa nova.
Sou essa integração cósmica todos os dias. Atravesso o mundo e sou atravessada por ele, e me sinto eternamente grata pelas ruas, pela chuva, pela cidade, pelo sol, pelas cores do céu, pelos sons, pelos cheiros, pelas pessoas e principalmente por essa conexão tão intensa com tudo o que existe.
Sou o que é.
Sou o mundo todo.

Cristo na Cruz - Jorge Luis Borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

in: "Os Conjurados"