... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Cristo na Cruz - Jorge Luis Borges

Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

in: "Os Conjurados"

Um comentário:

  1. "Que pode me servir que aquele homem tenha sofrido, se eu sofro agora?"
    Talvez essa frase explique outra de Jorge Luis Borges, a que diz: "todos os caminhos levam a morte."
    Isto porque, há um fato importantíssimo a ser observado na Cruz de Cristo, Jesus sofreu sem ter praticado injustiça alguma. Nem mesmo um pequeno pensamento pecaminoso. Mas, nós sofremos por nossos próprios pecados. Por nossos próprios erros. Olhar pra Cruz e enxergar apenas um homem sofrendo, é fechar a única porta de acesso à vida.
    Logo, todos os demais caminhos, realmente, levarão à morte.
    Se um justo morre injustamente, não pôr mãos de homens, mas por Ele próprio se entregar à morte, o objetivo da sua morte pode ser maravilhosamente evidenciado. Qual seja, levar sobre si as injustiças dos injustos. De modo que "todos pecaram, e destituídos estão da Glória de Deus."(Rm. 3:23)
    Todo homem que deseja um caminho que não leva à morte, deve olhar para a Cruz de Cristo como um refúgio, socorro e alívio à sua própria alma, arrependendo-se dos seus próprios pecados, e se apropriando da justiça divina contida na Cruz do Salvador Jesus.

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