... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Madrugada

Lá fora não há vento. Só frio. Como se o tempo estivesse parado, congelando a madrugada, congelando o instante. As grades da janela separam o mundo lá fora daquilo que no quarto está preso, grudado nas paredes, pairando no ar denso e envolvente, esfumaçado de medos solidão anbandono desespero angústia insatisfação melancolia sufoco apatia. As grades da janela distanciando a presença. Mas dentro de mim sua presença é constante, invade umidifica apavora fascina suga entorpece. Imagino mil encontros, mil palavras, mil carinhos, mil lugares. Você está em todos eles e em nenhum deles. A chama da vela vai amarelecendo minhas sensações, numa luminosidade mais confortável do que a luz branca da lâmpada ofuscando meus pensamentos. Você está aqui, mas não está. Você me invade e me domina, mas não sabe. Aqui neste quarto gelado, entre lençóis e cobertores, travesseiros e desejos úmidos, sua lembrança me envolve inteira em chamas, labaredas, salamandras e dragões. Sinto todos os seus cheiros, todo seu corpo e o calor do seu hálito. Lá fora nada se move. Olhando pela janela de grades neste tempo suspenso, lembro de sua beleza e da sua voz. Lembro de tudo. Aguardo ansiosamente o dia em que você virá, estendendo a mão num convite irresistível. E só então o dia vai se mover novamente.

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