... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Morte Branca

O dia frio convidava-lhe a ir embora, enfiar-se novamente em cobertores, vinhos, imagens sem importância na televisão, o gosto pungente da vida secando a boca. Mas recusava deliberadamente esse convite ao tédio - que vai aos poucos consumindo a carne, acidamente corroendo as vísceras. Preferia permanecer ali, prostrada no jardim público, a contemplar a vida que acontecia em volta. Sentia-se solitária. É bem verdade que mesmo entre as pessoas que povoavam seu cotidiano sentia-se do mesmo jeito, a navegar sozinha por um mar de vicissitudes. Ali não era diferente, a não ser talvez pelo anonimato, que lhe conferia, até certo ponto, uma suposta liberdade. "Até certo ponto" e "suposta" porque a cidade exigia-lhe seus pudores, sua conformidade. E ela, naquela suave entrega, entardecia fria com o dia, calmamente à espera de que viessem resgatá-la dessa infinitude de pensamentos desconexos. Concetava-se sim com algo suspenso, quase sagrado, que permeava-lhe a respiração. E no seu silêncio de pássaro esbanjava mistério e uma secreta vontade de girar, dançar, cantar, gritar, até exaurir-se, até esgotar-se. Mas alguma coisa a fazia permanecer ali, quieta, linda paisagem imutável. Nos desejos ocultos que a consumiam, a tentação de embrenhar-se no meio de um mistério qualquer do universo. E assim, nessa contemplação muda, mergulhou no céu da noite que ia surgindo. Sumiu de seu copro sem dor, sem desepero, antes com alívio, com renúncia. Morreu imóvel, sentada naquele jardim suspenso, pálida, o olhar nas estrelas e a alma a rodar...

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