... existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.

(Clarice Lispector)

terça-feira, 8 de março de 2011

Fumaça e fogo

Segurava o livro como se fosse uma relíquia. A única que lhe restara, depois que todos os sonhos e tesouros reais e imaginados tinham sido destruídos pelo incêndio. Estava sozinha, na plataforma da estação, sem saber que destino tomar. E como se todos à sua volta rissem dela, chorou. Nunca imaginou a solidão completa e tão desejada como algo tão desesperador. Era fácil ser toda independente e forte e mandar todo mundo se foder quando havia para onde voltar. Sentada, relia as páginas que pareciam ser sua única salvação. Seu único elo com a vida que fora, destruída em poucos minutos e grandes línguas de fogo e medo. As lágrimas embaçando a visão e molhando as palavras que lhe rasgavam a pele. Só conseguia lembrar do fogo consumindo tudo e dos olhos que suplicavam. E seus olhos, tão vermelhos como as chamas, tão cegos como se feitos de fumaça densa. Ódio. Arrependia-se?

Pensando nisso, enxugou as lárgimas e, tão calma como se tivesse alcançado uma inevitável verdade, saiu a caminhar pela linha do trem. Sorrindo, virou-se para trás ao ouvir o barulho da locomotiva. Recebeu tranquila e de braços abertos o único destino compatível com sua condição assassina e solitária.

O livro permanecera aberto no banco da estação. Em suas páginas manchadas das lágrimas, os versos restavam intactos e severos:

"Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?"*





* Álvaro de Campos

Um comentário:

  1. Thatoquita... que texto lindo e forte.... chacoalhão em plena quarta-feira de cinzas. Viva!

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